Receitas da Minha Avó

Luís Miguel Brito da Luz


A recolha, expressa em determinada estrutura, desvenda um “modo de estar e de pensar” entrecruzado com práticas que vieram de tempos passados. E, por revestirem interesses múltiplos, estas receitas, ao viabilizarem saberes e sabores, marcam inequivocamente esses tempos. Nelas muito se pode observar, saborear e reconhecer, em experiências que se tornam evidentes e soltam sabores óbvios.

Porém, em termos gastronómicos, a repartição do livro por territórios específicos dá-nos a conhecer a organização tradicional em que vivificaram. Por outro lado, o receituário (certamente escolhido entre outro mais vasto) presta a merecida homenagem à criadora e à época que, neste caso, perpassa toda a receita, bem como ao intérprete que agregou este trabalho, tornando-o num manancial de bens culturais de real valor e de mérito.

Que nos seja permitido dizer que agradecemos a possibilidade de transmitir as nossas opiniões e de destacar que a impressão em livro é oportuna pois, porventura, estaria em risco de se perder irremediavelmente. E não são só as receitas que valem, são também os modos de as fazer e a criatividade da concepção que são visíveis e notórias.

Das receitas resultam a perícia e o gosto da denominada “dona de casa” que, aliás, na opinião de distintos investigadores, são o rincão onde muita da nossa gastronomia está presente através da criatividade e da intervenção pessoal em que acrescentou os particularismos regionais e as especificidades pessoais.

Os regionalismos entrelaçam-se com a gastronomia da cozinha tradicional portuguesa, não só nos produtos como na técnica de os levar ao lume. Entre os peixinhos da horta, os carapaus de escabeche ou o frango assado no forno, ressaltam a utilização dos aromáticos coentros, as beldroegas do campo colhidas na fresca madrugada, a hortelã da ribeira ou o pequeno e fresco agrião que cresce na água.

Desse passado, localizado em Estremoz, percebe-se a preferência pelas carnes bravas e a perdiz, o uso de colorau ou de banha, hoje substituída por sofisticadas gorduras. Do sul ficaram as migas, com pão endurecido de dois ou três dias, ou mesmo mais para poder ser esfarelado, ou a famosa e avinagrada sopa de cação. Também nos doces se sente a influência sulista das azevias com feijão branco, das filhoses e das fatias douradas.

Estas receitas revelam o carácter identitário de uma cultura onde se miscigenam as características gastronómicas de cada sítio. Situação diferenciada da globalização “gourmética” de sabores padronizados que se desnovelam pelo mundo do pós-modernismo e onde tudo se amassa num gosto único que tanto serve o esquimó, o mongol ou o indonésio, porque não se identificam as raízes. Sabe bem, mas donde vêm?

Tal como num acordo ortográfico, esta aceitação tácita da nova cozinha irá empastelar tudo, de modo a que não se conheçam as origens, as influências, as características principais, os tempos ou os espaços, numa miscelânea gastronómica sem rei nem roque, em duas palavras — sem identidade.

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Carlos Consiglieri

Marília Abel



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